"Só, sem caminho certo e muito inquieto de mente" Lorenzo Lotto

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Femina e a origem do caos

Hoje assisti à palestra de Debora Breder no Femina, Festival Internacional de Cinema Feminino, que está ocorrendo ontem, hoje e amanhã, no Rio de Janeiro.  Ela é antropóloga e eu sou uma leiga nessa questão, então é bem possível que eu cometa algum equívoco seja em conceitos ou no que eu entendi/interpretei do que ela disse.  Mas, enfim, eu quero mesmo é falar sobre como a palestra dela me atingiu.

A palestra dela abordou a questão da simbologia, de como o feminino é simbolizado no discurso inconsciente, com foco em como esse simbolismo é mostrado no audiovisual, em particular na obra do cineasta Cronenberg, diretor de obras como "A Mosca", "Gêmeos, Mórbida Semelhança", "Filhos do Medo" e "Enraivecida na Fúria do Sexo".  Tem todo um conceito antropológico do simbolismo, que percebi como aqueles conceitos culturais que são mais profundamente enraizados, dos quais muitas vezes nem tomamos consciência.

Foi bastante interessante e angustiante perceber como o feminino, em todos os filmes discutidos, era sempre a origem da desordem, a origem do caos.  E sempre que o feminino real (a personagem feminina em si) se afastava, de uma forma simbólica, do feminino conceito (o ideal de mulher da sociedade patriarcal ocidental), uma catástrofe ocorria.  Mas, ao mesmo tempo, quando o feminino se excedia no próprio conceito do feminino (a geração da vida, a ligação com a terra, com a natureza), também ocorria uma desgraça.

Ou seja, a mulher precisa sempre ser contida no padrão que o status quo nos reservou, caso contrário traremos o apocalipse.  Sempre, sempre uma mensagem de "não saia do caminho determinado", um eterno joguinho de perde-perde ao qual estamos submetidas, onde qualquer escolha é errada.

E mesmo quando não saímos do script, ainda assim temos nossa parcela de culpa. Exemplo:  na maioria das vezes, quando um cientista se apaixona por uma mulher, algo dá muito, muito errado - a mulher é a perdição, a tentação, a origem do mal.  Ou seja, não há saída.

Então, quando ela citou que, na Idade Média, um dos critérios para se identificar uma bruxa era a amenorréia (falta da menstruação), eu imediatamente lembrei de já ter recebido inúmeras vezes um pensamento de que "a mulher é um bicho perigoso, pois sangra todo mês e não morre".  Veja que não importa se ela, a mulher, sangra ou não.  Em qualquer hipótese, ela é perigosa, precisa ser contida, controlada, estar sob vigia e até mesmo ser queimada viva.

Outro exemplo desse eterno perde-perde:  O stauts de símbolo sexual é das louras.  Sim, você vai me apontar dezenas de lindas mulheres não louras.  Mas repare nos anúncios.  Sem medo de errar, eu diria que cerca de 70% das modelos dos comerciais são louras.  Então toca as mulheres para o salão para pintar os cabelos (e 80% das que eu conheço pintam clareando), ficando cada vez mais louras e, portanto, mais próximas do padrão de beleza estabelecido.  Beleza!  Você foi ao salão e agora é oficialmente loura!  Então agora você é o quê?  Burra!  Porque toda loura é burra, não é mesmo?  Porque você não pode ser ao mesmo tempo bela e inteligente.  Precisa escolher!  E ao escolher... perde!  Ou carrega o estigma de não estar dentro do padrão de beleza, ou vai ter que aturar piadinhas de loura burra cotidianamente.

Quer mais um exemplo?  O salto alto.  Dizem que uma mulher fica mais bonita usando salto alto, mais sexy.  Mas, ao mesmo tempo, já ouvi homem dizendo que "mulher com salto ponto 8 com toda certeza é puta".  E não vou nem falar das dores causadas pelo salto, dores necessárias para ficar bela, dores exigidas em diversas profissões.

O quê?  Você queria ser bela sem sofrer?  Não!  Precisa escolher.  E ao escolher um, necessariamente perde algo (nem que seja o seu tempo).  Não é que eu queira todos os bônus sem qualquer ônus.  A questão é que esses ônus de que falei são fabricados.  Eles não são reais, são culturais.  É muito claro isso na questão das louras.  Essa burrice das louras só surge a partir do momento em que ela é tida como símbolo sexual.  É um ônus (a burrice) totalmente construído culturalmente.  E através de quê?  Das inocentes piadinhas.  E mesmo quando o ônus de fato é real (caso das dores causadas pelo salto), aí é o bônus que é fabricado!

E não é que homens (e mulheres) fiquem maquiavelicamente pensando em como compensar um bônus com um ônus.  Não.  A questão é que a inferiorização da mulher está tão entranhada na nossa mente, no nosso discurso, que acredito que fazemos esse tipo de coisa inconscientemente. De algum jeito, o discurso encontra uma forma de inferiorizar.  Sim, eu sei que discursos não são autônomos, existem pessoas por trás deles.  Mas, como disse, não acredito que seja planejado.  Não sou estudiosa do assunto e não saberia precisar de que forma isso acontece, mas penso que a cultura de inferiorização da mulher, na qual estamos todos imersos, é que nos impele a isso.  Talvez uma espécie de Síndrome de Estocolmo generalizada, na qual acabamos validando o próprio discurso que nos oprime.

Falou-se sobre muitos outras formas como somos apresentadas nas diversas mídias, como o parto ser sempre um sofrimento imenso nas nossas novelas (não deve ser à toa tantas cesarianas no Brasil), ou loucas teses médicas sobre não podermos estudar senão afetaríamos nossa fertilidade (oi?), entre muitos outros pontos.  Mas isso fica para outras postagens.

2 comentários:

  1. Achei incrível esse teu post Eneida deve ter sido uma palestra maravilhosa mesmo de tudo o que você falou o que mais me marcou foi isso: "como disse, não acredito que seja planejado" se referindo aos discursos que invalidam e diminuem as mulheres eu acho que esse acaso é ainda mais maquiavélico que o planejamento por que é um troço naturalizado a ponto de todo mundo fazer sem sentir... Você ficou falado das piadas de loiras e eu me lembrei que há não muito tempo atrás eu ainda reproduzia esse tipo de discurso... #shameonme
    bjos

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  2. adorei o post, eneida. queria muito ter ido a esse festival, mas fiquei sabendo depois. pior é ver as próprias mulheres reproduzindo esses falsos dilemas o tempo todo, parece até q ouço isso mais das mulheres q dos homens (mesmo q a ideia tenha sido plantada por um homem inicialmente, é oq vc falou bem q o sistema vai se reproduzindo)

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